quarta-feira, 30 de abril de 2008

na ausência povoei o meu mundo com monstros,
habituei os olhos à escuridão, especializei-me
na construção das muralhas desta cidadela
que jamais alguém ousa violar.

a única porta para o refúgio dirige o olhar
para o abismo em cujo promontório aguardo
a chegada do seu anjo, observando
atentamente a negrura imóvel na esperança
de ver a sua chama irromper.

mas as profundezas repousam na sua imobilidade alheias
a quaisquer anseios ou sonhos.
resta o bálsamo da misantropia, envenenado como poucos,
como companhia nestas reflexões nocturnas.

viro as costas à noite abissal, furioso
com a solidão e o silêncio que assombram
os corredores que percorro até ao átrio da minha fortaleza.
ensandecido derrubo a muralha e constato
que há muito me tornei invisível...

terça-feira, 22 de abril de 2008

um cheiro a tabaco e café a exalar
de bocas alheias, misturado
com o pertinente odor de suor,
ressequido vezes sem conta,
assalta-me as narinas ao chegar.

dentro de breves momentos o ruído
das máquinas em marcha tornar-se-á presente
até ao ponto de se fundir num murmúrio
constante, que nos entorpece até parecer
que toda a beleza se pôs em fuga
e que já nem a desesperada centelha,
que se tenta orientar neste labirinto, consegue
encontrar uma cadência à qual se agarrar,
como se a música que ainda conseguisse criar,
apesar da sua desarmonia, fosse
uma réstia de esperança no meio
da fealdade...

quarta-feira, 16 de abril de 2008

o desassossego visitou-te à noite
enquanto te detinhas nos textos passados
cujas palavras, arrancadas à vida,
repousam agora no templo do esquecimento.

os olhos estavam húmidos no regresso à cama
traindo a mágoa que te tinha assaltado
ao releres os relatos das desventurosas viagens.

no dia seguinte uma fúria ferida anunciou-se
ao reveres uma vez mais a obra que queres revelar.
juraste a ti mesmo que irias seguir em frente
não te detendo, não cedendo e, algures,
um riso escarninho recordou-te
o restante dos teus sonhos.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

de olhos no mar surgiste-me tu
pela primeira vez. talvez não fosses tu,
mas eras tu.
contemplei a tua imagem até ela
desaparecer, e depois esqueci-te,
durante anos, até que essa
determinada teimosia se fez de novo anunciar
com um riso capaz de estilhaçar
quaisquer trevas que assomem.
vieste materializada num sonho, com estrelas
no teu olhar
e chegaste ávida pela vida com a exigência
de uma rendição impossível
de negar.
eixo do mundo, epicentro
de um abalo
de sensações que julguei
jamais vir a sentir...

quarta-feira, 9 de abril de 2008

lembras-te das visões, dos apelos,
quando o mar sussurrava o teu nome
na brisa nocturna?

onde está agora essa voz que te segredava
mistérios e te revelava destinos fabulosos,
aquele murmúrio que te libertava
embalando-te na imensidão do vazio?

essa melancolia que carregas, em quantas marés
foi ela baptizada? consegues recordar-te
da primeira vez em que os teus olhos adquiriram
esse ar sonhador quando fitam o infinito?

e se as tuas emoções correm como a água
mas sentes-te preso, ansiando, num charco estagnado,
quando deixas o ímpeto das ondas conduzir-te
ao turbilhão para o qual nasceste?...

terça-feira, 1 de abril de 2008

um vazio enorme estende-se perante os olhos,
e sob os pés
a frieza áspera do solo faz-se sentir.
resta a queda, o impacto profundo, o estilhaçar
da ilusória armadura.

o trajecto até ao destino desenhado
pelas cicatrizes no corpo.
esse mapa que aguarda ganhar asas
para se elevar sobre esta terra de ninguém.

a fenda majestosa engole o corpo na descida
num sorriso de escarpas afiadas.
do confronto do uno com a imensidão
surge o nulo.

num virginal estado de sensações,
na sofreguidão de tudo provar.
por entre contornos de sangue a liberdade
abre-se de par em par
e ruma-se às estrelas...