quarta-feira, 20 de outubro de 2010

o relógio marca o compasso opressor do tempo a esvair-se.
sangra-se o tempo que não foi nas saídas mortas do labirinto.
na eterna repetição da hora, no momento desconexo da amarga [contemplação
quando as sombras se distendem e vencem a estatura
da figura que recortam na solidão do plano.
aí, nesse momento de crepúsculo, entre a hora que partiu e a que [chega,
encerra-se o segredo da minha existência.
a ténue fracção de segundo não percepcionada
entre o brilho e o ocaso. o reino da invisibilidade,
o eterno segredo que não precisa de o ser.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

aparentemente imóvel, movendo-se porém a uma velocidade
que nenhum olho consegue percepcionar.
como o padrão no canto de uma baleia, indistinguível
ao ouvido humano.
sempre foi esse o segredo da minha auto-destruição.

movo-me como as placas tectónicas, imperceptível até ao dia
em que nos detemos a admirar a sua transformação e nos [questionamos
como foi possível chegar a este ponto sem que o tenhamos visto.

sou um vírus adormecido até à data da sua furiosa disseminação.
sou um sonho incandescente a tragar mundos
a serem descobertos num futuro remoto.
trago a memória dos dias que não foram,
quando a morte se acercou da criança adormecida
e a beijou na fronte deixando a peste invadir
o virgem sono.
há um túnel onde se caminha de cabeça baixa
e, mantidos na obscuridade, acreditamos na nossa solidão.
um caminho sinuoso do qual não sabemos como sair,
que nos conduz sempre mais perto do coração das trevas,
onde buscamos a justificação para o ódio que nos infligimos.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

o dilacerante desespero do grito ofuscou o brilho do dia
ecoando mudo no plano da mente reconduzindo as trevas
à sua morada habitual e, como que com um sopro,
a paisagem desvaneceu-se deixando apenas a terra estéril.

a mão que desenhava a paisagem deteve-se
petrificando-se num ponto tão vazio
quanto a efémera concretização do desejo.
e, nesse instante perpetuamente suspenso, a noite
alongou-se até a sua vastidão tudo engolir.

na longa estrada que cobre a distância da memória
muitos são os que permanecem perdidos.
e o que somos nós senão a recordação que fica
após o tempo findo?

domingo, 4 de abril de 2010

o nosso traço esbateu-se diluído na incerteza
com que os dias se redesenharam a partir da nossa janela.
o grito que louvávamos emudeceu moribundo
com os últimos ecos a povoarem o lugar da nossa ausência.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Primeira parte de Altar of Plagues


A convite da Amplificasom, dia 6 de Maio farei a primeira parte do concerto de Altar Of Plagues na Fábrica de Som. A minha prestação consistirá numa leitura integral do livro "A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer" da autoria de Stig Dagerman (editado em Portugal pela Fenda). À satisfação enorme em me ter sido feito tal convite, acresce o facto de ir ler este pequeno grande livro, tão importante para mim, de um dos meus autores favoritos. Seguir-se-à o concerto dos Altar of Plagues (verdadeira razão para se aparecer por lá) que, após o excelente "White Tomb" do ano passado, por essa altura já terão editado o seu novo EP, intitulado "Tides", que conterá dois temas que, segundo os próprios, foram inspirados pelo poder e energia do Oceano Atlântico.
Apareçam!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

não me mostres a memória, o sonho,
a ideia do que eu seria
para lá de tudo o que não sou.

não me recordes a glória, a ânsia
que possuía de vencer
em todas as batalhas em que fui derrotado.

não me lembres quem eu era
para não tornar ainda mais
impossível de suportar quem me tornei.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

a luz evanescente traz consigo um apelo
que estende o seu murmúrio reverberando
onde ecoam os passos da solidão

há encerrada em si a memória
da linha do horizonte recortada a laivos de fogo
precedida pelo mar

eu ainda estou naquele rochedo
onde as ondas contavam segredos
e imprimiram em mim a sua voz

eu ainda tenho dez quinze vinte anos
e tudo é ainda jogado
no campo das probabilidades

ainda as sombras não se abateram
e a tempestade surgiu no horizonte
ainda a inocência perspectiva o futuro

já a mácula se instalou ainda que indelével
mas a sua presença não foi notada
até à hora das trevas

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

há demasiado tempo que o ar nesta latrina se tornou insuportável
e cada dia é vivido na vã mentira a nós próprios
de um dia conseguirmos respirar.

há demasiado tempo que as sombras se tornaram tão densas
que nos substituíram
e nos perdemos no esbatimento da sua projecção.

há demasiado tempo que não sabemos o que é suposto sermos
para além de toda a carga que agora nos anula
e que sentimos nunca terminar.

há demasiado tempo que nos separamos e esquecemos
o trajecto que tínhamos perfilado no horizonte
aonde sabíamos que iríamos chegar.

há demasiado tempo que as armas foram depostas
e se encontram enferrujadas num canto
para onde relegamos os sonhos que preferimos não sonhar.

há demasiado tempo que não sermos se tornou banal
e queimamos o tempo numa cruel ânsia
por um fim nulo.

há demasiado tempo...
há demasiado tempo que aguardo o dia
que cesse a noite que me encerra
e possa rever, por entre névoa e ruína,
quem eu julgava ser.

há demasiado tempo, porém, que perdi aquilo que fui
e me tornei no que sempre odiara.
há demasiado tempo que vivo incapaz sequer de descortinar
a saída do labirinto.
há demasiado tempo que fui devorado
pelo que nunca desejei.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

é uma estranha serenidade,
uma doentia ausência de mobilidade
que dissimula uma raiva demasiado
profunda.
é como uma casa, perfeitamente visível
e por onde toda a gente passa,
sem que nunca ninguém se aperceba
do que realmente ocorre
no seu interior.
uma jaula de vidros fumados
insonorizados e inquebráveis
onde se é destruído à vista
de todos.

é uma distância impossível de descrever
e percorrer,
um caminho onde tu próprio detonas
as pontes que te conduziriam de regresso.
uma fuga sempre em frente numa
ânsia auto-destrutiva por um
abismo.
é uma sensação de tudo querer
e nada fazer,
desejar as estrelas sem antes aprender a dar
um passo.

é a expectativa de um rio a transbordar
espera-se sempre que os diques aguentem
mais um pouco,
nunca sabemos quando virá a
derradeira gota que fará
transbordar a represa.
tem-se o secreto desejo de
ao menos a destruição deixar
memória.

é a voz que se cala, uma e outra vez,
o grito que se deixa morrer
na garganta, até que
se deixa de saber gritar.
são todos os sons que deixamos
desaparecer até
já nem a memória restar.

é a dor dos anos que passam
sem que a imobilidade seja
abalada.
é o desespero que vai chegando,
primeiro de mansinho até
se sentir a sua presença de forma
avassaladora.
é o animal que vai saltando às grades
já ignorando a intensidade com que
se fere.

é a escolha da vítima em sê-lo
porque o carrasco sempre
o será,
é a violência que jaz adormecida
latente
a aguardar o pior momento que comprove
a nossa bestialidade.
é a dolorosa constatação da derrota perante a
vida.

domingo, 24 de janeiro de 2010

as fissuras afloraram à superfície, imperceptíveis de início, mas logo inequivocamente presentes, conferindo, numa primeira visão de relance, uma distinta aura de pintura antiga, uma falsa disposição artística, revelando logo em seguida porém as suas verdadeiras debilidades, a fragilidade intrínseca que já denunciava o colapso.
imóvel, incapaz de se regenerar evitando a desesperante ruína, o edifício desabou num clamor de angústia abrindo caminho à insuportável banalidade do quotidiano humilhante.
das suas alas fugiram o que restava da delicadeza e vontade e o ocupante das ruínas renomeou-se desespero.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

há uma distância enorme medida
pelo comprimento de um braço, pelo toque
de uma mão, o sabor
de um beijo, o som
de uma palavra.

uma distância de muros
invisíveis, gestos contidos
pela densidade da não-
aparente solidão.

uma distância árctica nos olhares,
na falsa altivez com que
nos cruzamos a dissimular
a nossa fraqueza.

há uma distância descrita na
melancolia de um dia
de outono, na trajectória das
folhas
em
queda.

uma distância impossível
de cruzar e que se acentua nesta
fria idade do mundo
neste lugar de olhares
mais longínquos, mais
frios.