acordas, sais, chegas ao emprego,
trabalhas, sais, chegas a casa,
dormes, acordas, sais, não chegas a lugar nenhum,
trabalhas, sais, foges para esquecer que os dias se repetem
até à náusea,
reduzes o período de sono, acordas esgotado,
sais, chegas a um buraco de nulidade,
passas o dia alheio, sais, viajas para o sonho,
não chegas ao sonho, desistes, vais dormir esgotado,
acordas cansado, sais, chegas, a quê? não sei,
ficas por lá, sais, regressas ao esquecimento,
e o que ias fazer hoje? pois, também não sei,
adia-se mas não faz mal é sempre assim,
pousas ao de leve na cama, arrastas-te para fora dela,
sais, para onde vais? é sempre o mesmo,
chegas, ficas , partes mas nem por isso,
chegas, deambulas, esqueces, adormeces, acordas, sais,
começas a notar algum padrão? chegas,
começas a sentir algum desespero? sais,
será apenas isto? chegas, será apenas isto? dormes,
não há respostas, acordas, não vês soluções, sais,
chegas, dormes, acordas, sais, chegas, acordas, partes, dormes, sais, chegas, acordas,
tudo igual, tudo igual, tudo igual,…
... … … … … … … … …
vives na expectativa de um dia conseguires fugir a esta loucura inútil que apenas te cerceia as capacidades que sabes ter mas das quais nunca usufruis
perdido num dia-a-dia de nulidade em que apenas sentes os muros que te cercam a adensarem-se cada vez mais enquanto a tua intensidade cresce
forçado a um definhamento que viola o mais profundo dos teus sonhos, e quantos outros viverão esta estupidez, este insulto, de se conformarem
a uma vida de mediocridade com o único intuito de conseguir sobreviver quando a sobrevivência não passa de um fraco substituto de uma verdadeira vida
vivida no mais pleno das suas aptidões das suas aspirações, entregue a um estado onde não existe evolução não existe desafio nem compensação
que justifique qualquer empenho que se possa ter mas o qual incrivelmente ainda é esperado e ainda por cima até exigido
e que solução é que tens em vista quando ironicamente cais num buraco que nem novas oportunidades nem ingressos especiais na universidade contemplam
e mesmo que contemplassem o que irias fazer se a merda do ordenado nunca chega ao fim do mês quanto mais para pagar propinas
de um curso findo o qual ainda não terias obtido as “cunhas” necessárias para arranjar um emprego neste filho da puta deste país
que continua a arrastar-se num lamaçal sem solução à vista enquanto todos os meses nos vendem a ideia que o desemprego diminuiu, e no entanto
toda a realidade que constatas diariamente contraria isso, e isto não é nenhum delírio isto é a vida que eu enfrento é aquilo que eu vejo
quando vou no autocarro, quando ouço as pessoas, quando constato a quantidade de fábricas que eu já vi fecharem e penso no que isso se salda
em termos de vidas humanas, em famílias atiradas para o sobreendividamento sem solução à vista
e no meio de toda esta realidade de todo este duche frio de vida o que resta para a poesia, para sonhar, para viver,
e isto nem sequer tem pretensões de ser poesia isto é a vida, vida sem auto-censuras sem métricas sem preocupações nem rimas
vida sem floreados em que contas os teus problemas por metáforas, vida sem figuras de estilo sem nada
a realidade escarrapachada aqui com toda a crueza da linguagem, com os caralhos que usamos o fodidos que estamos e a puta que os pariu que berramos
desesperados por não vermos solução neste caralho deste ardil em que nos metem e que dizem que faz bem à economia
enquanto nos fodem os direitos que outros antes de nós tanto sangraram para obter e nós de braços cruzados sem fazer a ponta d’um corno
e como bons portugueses lamuriamo-nos que esta merda nunca mais melhora e que nos outros países é que é enquanto nos esquecemos
que nos “outros países” se tira cú do sofá e se vai para a rua para fazer alguma coisa e nós por cá orgulhamo-nos de ter feito uma revolução
em que quase não se disparou um tiro quando devíamos era ter tirado a tosse a uma data de filhos da puta
e se calhar assim as coisas até tivessem melhorado um bocadinho, mas não, preferimos ficar nos nossos brandos costumes
que disfarçam o nosso real conformismo e a falta de vontade de fazermos alguma coisa que realmente provocasse uma mudança
ou se calhar não, porque sinceramente às vezes duvido que teríamos capacidade para realmente mudar o que quer que seja,
e enquanto oscilamos entre estas indecisões que não nos levam a lugar nenhum só nos vamos enterrando mais e lavando as nossas mãos da responsabilidade que possamos ter
mas também ao fim e ao cabo acabamos por nos ver tão presos e angustiados em conseguir aguentar tudo com que nos deparamos diariamente que nem nos afastamos
para conseguir obter uma panorâmica maior de tudo isto em que estamos enfiados mas também é suposto ser mesmo assim
para que não nos comecemos a dar ao trabalho de questionar uma série de coisas que não é suposto questionarmos
e aliás até deve ser por isso que cada vez se aposta menos em disciplinas do pensamento porque já sabemos aonde é que isso levaria
e até fazem bem e têem um terreno fértil para isso na tradição cultural deste país que se exprime tão bem em todas as vezes que me dizem
“não penses que não vale a pena” e ao que eu respondo “se a opção é não pensar e tornar-me igual ao que eu vejo à minha volta então não obrigado”
mas obrigado vou sendo a aguentar isto porque no fim de contas não existem propriamente alternativas viáveis e parece que toda a gente menos eu consegue arranjar empregos melhores
sem que isso signifique necessariamente que sabem mais ou que sejam melhores no que quer que seja mas enfim é a merda da sorte
que vá-se lá saber porque raio nunca quis nada comigo quando eu até nem me importava de ter um tórrido caso com ela mas enfim
a sorte é uma puta que se dá ao luxo de escolher os seus amantes e aparentemente eu não devo despertar grande interesse para tal
e com esta conversa lá pareço estar eu de novo a lamentar-me quando na realidade não, estou apenas a relatar os factos que vejo à minha volta
como se isso importasse, como se fizesse alguma diferença o que quer que eu possa estar aqui a dizer
já sabemos como as coisas funcionam e isto não conduz a nada e de pessoas em pior estado que eu está o mundo cheio
pessoas que apenas se preocupam em chegar ao dia seguinte e não podem estar cá com mordomias de se sentarem para escrever sobre isso
e se o fizessem será que quereríamos saber porque no fundo a dureza dessa realidade estilhaçaria por completo o bem-estar que usufruímos
e realmente isto é cada vez menos poesia isto é um manifesto isto é um instantâneo isto é um fragmento da vida
registado no início do século vinte e um, em dois mil e sete para ser mais exacto, algum tempo depois de eu ter completado trinta e quatro anos
uau, trinta e quatro anos, sempre pensei que as coisas seriam bem diferentes quando tivesse esta idade mas, hei, toma lá disto para veres o que é bom
e para a próxima vê lá se tomas resoluções melhores na tua vida, azar do caralho porque só vivemos uma vez e eu até nem acredito em deus
e é por essas e por outras que acabo sempre duplamente fodido porque nem o raio do consolo espiritual tenho para justificar o que quer que seja
e tudo isto está aqui a ser disparado em catadupa numa autêntica vertigem e isto nem sequer é uma voz do abismo
isto é o abismo, sem floreados esotéricos, sem misticismos, apenas o grandessíssimo buraco sobre o qual caminhamos
e que nem sequer sabemos quando termina, e mesmo terminando, tal como isto aqui até quero ver quem é que vai aguentar até ao fim
sim porque correndo bem ou não é sempre para lá que caminhamos sempre sempre inevitavelmente para o… fim.
1 comentário:
É uma linguagem crua a que utilizaste, mas gostei bastante de ler. É forte, sincera e sentida.
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